"Que as palavras soem para você da melhor maneira a se encaixar na sua vida. Sejam doces, amargas, confortadoras, desafiantes, incômodas. Mas que soem... Esse é o meu real desejo."

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Desatando-Nós

Carta a um estudante de medicina, escrita por mim em 26 de março de 2010, após sair de uma aula de pediatria, com uma das melhores professoras da minha universidade, e da qual eu não sabia responder (quase) nenhuma pergunta. Agora muito mudou.

Desatando-Nós

Hoje, pela primeira vez eu tive medo.

Pela primeira vez, que digo, durante esses últimos 2 anos e 2 meses de faculdade. Medo de não estar sendo o que as pessoas merecem que eu seja (não o que elas querem). Medo de não corresponder às necessidades do futuro, de não fazer o que o paciente - e a sociedade - e, principalmente eu mesma, espero de mim. Vi que já estudei muita coisa em 4 períodos, e constatei que não corresponde a quase nada do que se tem pela frente.

Qual a ordem de grandeza de células do nosso corpo?
Qual a osmolaridade do plasma humano normal?
Quais as vacinas que se toma com 6 meses de idade?
Qual a diferença de resposta Th1 e Th2?

Talvez eu soubesse responder todas essas perguntas. Talvez não. E realmente eu não sabia. Não por que não tivesse estudado, estudei sim, e muito (suficiente para umas coisas, e nulo para outras). Mas por algum motivo, não sabia. Os conceitos são apresentados a nós, e por mais que nos esforçemos veementemente em compreendê-los para aplicação prática e construção de novos conceitos e conhecimentos, muitas vezes esquecemos desse propósito no dia seguinte, e passamos a decorar fórmulas que respondam satisfatoriamente às provas e nos garantam um 7 mínimo no fim do semestre.

A ciência, ao longo do seu percurso, cria conceitos e, no estudo deles, distancia-se e aproxima-se da proposta original por diversas vezes e, dessa forma, novos e novos conceitos são criados. Braz da Silva, em 1998, disse que o estudo do percurso de aproximações e distanciamentos relativos à história de uma dada ciência que um determinado conceito apresenta tem [o estudo] como ponto de partida respostas e dúvidas relativas a esse conceito.

Pensemos agora naquilo que planejamos. Qual a concepção que temos de futuro? O que queremos com a medicina? Fazemos planos, vislumbramos um futuro bonito, humano, até mesmo de reconhecimento e prestígio, e... Quando começamos a correr atrás disso? Antes de ontem? Ontem? Hoje? Ou amanhã ainda da tempo? Segundo Piaget, as concepções prévias [do amanhã] podem ser tomadas como ponto de partida para a construção de novos conhecimentos. Assim sendo, o papel do indivíduo/estudante é o de construtor de seus conhecimentos a partir de seus interesses, que o conduz à ação no sentido de tomar para si um dado objeto. Agora, voltando às minhas palavras digo: o ponto de partida precisa ser "o hoje".

Então, pergunto-me: será que tenho feito isso? O que tem sido minha motivação para alcançar meus objetivos ou, no mínimo, ratificar minhas concepções prévias? Motivar-se é a mola propulsora, pois despertar interesse implica envolver o indivíduo em algo que tem valor para si. E essa deve ser nossa pulsão diária. Precisamos transformar o conhecimento num prazer. Isso, de forma alguma, aniquila os outros prazeres da vida (graças a Deus que não). Mas escolhemos cuidar do próximo, e cuidar do próximo tem que deixar de ser um mero dever e tornar-se de fato prazer. Vejamos o caso de Zilda Arnes: tinha família, filhos, marido, amigos. Dedicava-se incansavelmente a eles. Cursou a medicina num período de instabilidade governamental. Dedicava-se inteiramente a ela. Amou a pediatria e o trabalho social com as crianças que não tinham o mínimo sustento de vida. Dedicou-se inteiramente a isso. Morreu como um mártir (para os que sabem reconhecer), não por que tinha 100% de conhecimento, mas porque usou 100% do conhecimento que tinha para viver de maneira holística, completa, dedicando-se à família, trabalho, amigos e, no fim das contas, completando a essência de sua vida e satisfazendo as necessidades de prazer do seu coração.

Sei que preciso empenhar minha motivação visando à melhor prática possível da medicina, e sei que estou longe disso. Mas outra certeza que tenho é de que nada é impossível. O ser humano foi criado pelo Divino, e divinamente capacitado com um cérebro e um coração capazes de voar alto, e criar novas asas em diversas situações da vida. Mas para isso, é preciso alimentar-se. Nenhum organismo cresce sem nutrientes. A cognição não cresce sem acesso ao conhecimento, a ciência não cresce sem estudo, e o estudo não se sustenta sem motivação. "De nada adianta desenvolver em sala de aula um formalismo, seja matemático ou lógico, de um determinado problema, se este não se constitui enquanto problema para o estudante. Não se pode esperar superação em suas concepções alternativas se os estudantes engajados no processo de aprendizagem não estão, de fato, envolvidos no construir e questionar suas hipóteses. É necessário que se sintam seduzidos pelo que lhes é apresentado, que encontrem significação a partir das atividades desenvolvidas, para que possam compreender os enunciados científicos e a construção da própria ciência (Braz da Silva, 1998)."

Meu conselho a mim mesma, diante do espelho, e daqueles que esmero, é que eu me seduza pelas minhas escolhas. Não entrando no caminho de me perder nelas, e me perder na vida. Mas entrando no caminho de motivar-me a partir delas. De fazer com que o medo não se torne um fantasma, um estandarte do exército inimigo. Mas que se torne a incógnita que precisa ser descoberta, o atrito que precisa ser despresado, a resistência que precisa ser vencida, e a fonte de desafios que precisam ser alcançados.

Segundo Lenine, pernambucano de corpo e alma, carioca de política, e inteligente de berço: "O medo é como um laço que se aperta em nós, o medo é uma força que não me deixa andar".

Que nós possam ser desatados e que as cordas sirvam de ganchos para alçar vôos, pular barreiras e escalar montanhas. Que nós não nos prendam e impeçam de andar. Que o futuro, bem aí a diante, nos instigue constantemente a buscá-lo melhor do que o que ele parece ser, para que cheguemos nele achando bom ser como seremos.

Que o medo não seja prego que fixe, mas que seja mola que empurre, alto, longe, grande. Do tamanho da nossa capacidade, que é o melhor de nós.

Amanda Cristina Pereira
26 de março de 2010

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