Releitura adaptada e transformada das Obras: Vidas Secas (Graciliano Ramos), Morte e Vida Severina (João Cabral de Mello Neto), O Bicho (Manuel Bandeira), José e Sentimento do Mundo (Carlos Drummond de Andrade). Trabalho da Disciplina de Planejamento e Gestão do SUS, na faculdade.
O Andarilho
Essa é a história de um viajante, José, que passou dias peregrinando por entre alguns municípios da XI regional de saúde de Pernambuco em busca de atendimento médico.
Na depressão avermelhada os juazeiros alargavam algumas manchas verdes. José tinha caminhado o dia inteiro, estava cansado e faminto. Fazia horas que procurava uma sombra, já havia descansado um pouco às margens do Pajeú, mas tinha sede. De longe, pôde ver a folhagem de uma caatinga rala e caduca, como ele.
Continuou andando e avistou a indicação Floresta, à direita. De imediato veio à mente uma abundância de águas, como o oásis visto em Triunfo, dias atrás da viagem. Logo, foi tomado por um vento quente que mais parecia o bafo de “sei-lá-quem” soprando na terra pobre e rachada. Viu que a visão era só um sonho.
Resolveu então mudar de rumo, pegou à esquerda em direção a Serra Talhada. No meio do caminho observava, triste, a caatinga que estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de ossadas. No céu, seu único teto desde então, o vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de moribundos vivos, mortos e quase-vivos.
José, repentinamente, sentiu uma punhalada na boca do estômago. A seca e a pobreza enfiaram-lhe uma faca em meio ao ventre e a fome lhe corroia de dentro para fora. Sabia que a região tinha, no máximo e de certeza, alguma plantação de cana-de-açúcar. Juntou umas moedas que ainda restavam no bolso e trocou-as por aguardente e uma lasca de rapadura. Desejou que aquela bebida refrescasse a sua mente, assim como o sopro gelado das noites “Triunfais”. Mas estava fraco, não tinha força nem para desejar, e a cachaça desceu queimando, como a bala da arma de lampião que matara seu avô queimando-o por dentro anos atrás.
Guardou a rapadura e continuou a viagem.
Era fevereiro, época das chuvas de verão. Por um raro momento José sentiu-se no paraíso quando aquelas gotas tímidas e escassas começaram a escorrer-lhe a cabeça queimada. Parou e viveu profundamente aquele momento. Quando abriu os olhos, viu um cão gordo ao seu lado. Não sabia se o bucho era prenhes ou vermes, mas aquela figura curiosa acompanhar-lhe-ia no resto da viagem. O cão olhava para José com os olhos de perdido. Ele levantou-se, seguiu viagem, e o cão o seguiu. Era seu novo amigo e ele sabia disso, então passou a chamar-lhe baleia que lhe lembraria as águas do Pajeú distante.
Finalmente chegou em Serra Talhada. Teve certeza disso ao escutar, lá no fundo, o ritmo do xaxado tomando seus ouvidos. Como aquele lugar tinha crescido! Pensou. Teve certeza que a cada passo que dava a cidade tinha cem pessoas a mais em cada lugar, que há quatro anos atrás, quando lá foi pela primeira vez. Gostaria de estar ali como turista, pois sabia que a cidade tinha muitos atrativos, mas esse não era o caso.
Resolveu sentar à escora de uma árvore que tinha guardado o último galho para fazer sombra na chegada de José. De longe, viu um bicho catando comida entre os detritos; o que achava engolia, com voracidade. De repente aquele Ser levantou-se e andou sobre duas pernas e José viu que o bicho, meu Deus, era um homem!
Chegou perto e ofereceu ao bicho-homem uma lasquinha de rapadura. Ele a engoliu de vez, e José pôde sentir a satisfação da fome saciada naquele homem. Baleia, nesse momento, já estava em meio aos entulhos, mas José não ligou muito. Não tinha nada de melhor para oferecer ao cão.
José então perguntou ao homem:
- Comé seu nome, cumpadi?
O bicho, ou melhor, o homem respondeu:
- O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia, deram então de me chamar Severino de Maria do finado Zacarias.
José então disse:
- Meu avô era Severino, Severino de Itacuruba, porque era o ancião da cidade, na geração dele. Mas o danado do Lampião, homi dessa terra de cá, tratou de levar a alma de meu avô.
Severino respondeu:
- Ah Zé! Nós somos tudo Severino, iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina, de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia. E de fraqueza e de doença a morte ataca em qualquer idade e até gente não nascida. Veja ali aqueles mininu correndo! Tiveram sorte, passaram de um ano, pois antes disso morre muito aqui. A gente tenta fazer mais, mas eles teima em morrer. Se num ano nasce mil, pode crer que trinta não vinga.
Nesse momento uma daquelas crianças que, se não era Severina no nome, era de vida, com aquela cabeça grande que a custo se equilibrava no ventre crescido, acima de duas pernas finas por onde corre um sangue de pouca tinta, chegou junto de Severino chamando-o de pai.
- Deixe pai lhe apresentar Zé, meu novo amigo. Ele vem lá de Itacuruba, deve tá atrás de alguma coisa boa aqui em Serra. Zé, esse é meu filho, o primeiro que vingou. E ainda deixou a mãe três meses no hospital. Mas passou dos cinco anos e agora tá robusto. Já venceu duas diarréias e uma pneumonia. Acho que esse nasceu de bunda pra lua.
- Ô Severino, esse seu menino estuda? Num devia tá na escola uma hora dessas?
- Ah Zé! O estudo aqui é difícil. Pensei em me mudar pra Triunfo, lá as escolas são mió. Mas a minha pobreza é grande. Aqui eu ainda trabalho na roça; lá, nem isso. O mininu ta estudando, mas perde muita aula por causa de doença, e assim que chegar no segundo grau vai parar pra trabaiá na roça comigo.
- Mas só você trabaia na sua casa, Severino?
- A muié faz uns crochê e renda, e mais uns tal de artesanato. Os turista rico da capitá leva tudin. Mas atualmente o movimento ta fraco...
O menino então falou:
- Zé, tu tem comida?
- Deixa disso menino! - retrucou Severino.
- Comida eu num tenho não meu filho, tenho aqui um potin de mel e uma lasquinha de rapadura, tome pra você. Severino, agora eu preciso ir, tô atrás de um hospitá pra trazer minha mãe que tá doente.
José então partiu, na esperança de achar alguém que pudesse cuidar de sua mãe. Ela já estava cansada e velha, e Zé sabia que poucos ali passavam dos sessenta e cinco, mas não podia desistir, era sua mãe.
Andou mais uns quinze minutos, e já encontrava-se no centro da cidade. Provavelmente era dia de festa, talvez uma comemoração política ou partidária, não sabia ao certo. Bacamarteiros saltavam fazendo danças e atirando. O povo ria e aplaudia, e Zé ficou encantado com tudo aquilo. Eita beleza de cidade! Pensou. Ali deveria haver um lugar onde sua mãe seria muito bem tratada.
Quando afastou-se daquela multidão que festejava, viu que baleia não mais o acompanhara (ele deve ter encontrado seu caminho). Encontrou um posto de saúde e resolveu entrar para pedir informações. Nunca tinha visto um posto daqueles. Tinha médico lá, o dia todo, diferentemente de sua cidade. Ficou empolgado, estaria agora na mina de ouro para o tratamento de sua mãe? Pediu licença e foi entrando, passou por um longo corredor com quarto portas, ouviu um barulho estranho, achou ser uma reforma, mas era apenas o barulhinho assustador do compressor do dentista. Chegou ao balcão de recepção onde estava uma moça linda e simpática, que José adoraria que estivesse à sua espera.
- Boa tarde minha sinhora! A sinhora podia me ajudar?
- Diga moço, a que lhe sirvo?
- Eu vim de distante. Há dias que viajo a pé. Me disseram que aqui nessa cidade, eu podia encontrar o que preciso. Minha mãezinha, senhora, está muito velha e doente. Ela já tá no finalzinho, eu sei, mas me acho obrigado a cuidar dela. Onde eu acho um médico pra cuidar dos rim dela? Pelo visto, essa cidade aqui atende muita gente, acho que todo mundo vem pra cá. Mas é difícil sabe. Os bichos atacam nossas barrigas, nossos pulmão, e onde nois mora, num tem muito onde tratar. O melhor é aqui mesmo. Onde eu posso ir? Ah! Me chamo José, é um prazer.
- José, como em todo lugar, é muito difícil a gente conseguir atender toda a população. A gente tenta cuidar das grávidas, mas num damo conta. Das criança, mas num damo conta, e nem dos velhos. O povo continua morrendo e adoecendo de diarréia, pneumonia, verme... Os hospitá ta tudo lotado. Pode acreditar, falta até cama pros doente, eles têm que ficar em cadeira (na verdade tem leito, visse! Mas um monte quebrado). A que ponto chegamos; isso quando não falta médico da especialidade que precisam, e o povo tem que ir pro Recife. Mas eu vou lhe ensinar, a chegar no Estadual. Porque aqui é só PSF, num serve mais pra sua mãe não. Ela precisa duma coisa maior.
- Obrigada moça. Deus lhe pague!
- Não tem de quê! – Entregou o papel a Zé, e ele saiu, em busca do hospital estadual Professor Agamenon Magalhães, o maior, melhor, e único da região.
José, cansado que estava, resolveu parar agora para comer. Precisava encher a barriga com algo de mais sustança. Entrou num boteco, próximo ao posto de saúde, e pediu um prato de comida. Enquanto a comida fervia no fogo, José foi ao orelhão, ligar pra casa, pra saber como as coisas andavam por lá. Imaginou cada grão daquele feijão borbulhando na panela, enquanto caminhava até o orelhão e sentia o chão ardendo-lhe por sob os pés. Usou a única ficha que tinha e desejou, com as últimas forças que lhe restavam, que alguém atendesse a ligação. Passado um longo tempo de vinte segundos esperando, alguém falou do outro lado da linha.
- Alô?!
- Alô Maria! Aqui é Zé! Cheguei em Serra irmã, é tudo tão lindo e tão grande aqui. Achei um hospitá que a moça me indicou, acho que vão poder cuidar de mãe. Como as coisas vão aí?
Um silêncio gélido se fez do outro lado da linha. Há dias José não sentia um frio na espinha, mas preferia não ter de senti-lo daquela forma, o calor imediatamente tornou-se o mais confortável sentimento, mas agora estava tudo frio. Entendeu o que se passava. A sua mãe era só mais uma, mais uma que entrara na estatística. Dos que morrem sem atendimento, ou dos que morrem das doenças mais prevalentes, ou dos que morrem de miséria, ou dos que morrem de velhice... Em qualquer parâmetro ela se encaixava. Pôs o telefone no gancho, como quem descarrega as botas cansadas da lida após um dia inteiro de trabalho duro. Voltou ao boteco arrastando-se como um caminhão puxa um bloco de concreto. Escalou a cadeira e sentou-se em frente ao prato de comida. O feijão tornara-se sem cor, sem gosto. A viagem tornara-se sem sentido e, José, sem esperança. Pôs-se então a pensar...
“E agora, José?
O dia acabou,
A vida findou,
A noite esfriou.
E agora, José?
E agora, você?
Você que é sem mãe,
Que não tem dinheiro,
Que mal tem saúde,
Que vive, sonha?
E agora, José?
Está sem ninguém,
Está sem discurso,
Sozinho sem rumo,
Já não pode sorrir,
Já não pode prosseguir,
Dormir, mal pode...
E agora, José?
Sua doce palavra,
Seu instante de febre...
Seu ódio – e agora?
Com a chave na mão
Quer abrir a porta
Não existe porta;
E as que existem não abrem.
Se você gritasse,
Se você gemesse,
Se você lutasse?
Mas você é apático,
Perdeu a chance,
A mãe já não vive.
Se você dormisse,
Se você cansasse,
Se você morresse...
Não! Morrer não José!
Só pra entrar na estatística?
Marche José!
Fuja a galope,
Mesmo sem saber pra onde,
Um dia irás chegar.”
O Andarilho
Essa é a história de um viajante, José, que passou dias peregrinando por entre alguns municípios da XI regional de saúde de Pernambuco em busca de atendimento médico.
Na depressão avermelhada os juazeiros alargavam algumas manchas verdes. José tinha caminhado o dia inteiro, estava cansado e faminto. Fazia horas que procurava uma sombra, já havia descansado um pouco às margens do Pajeú, mas tinha sede. De longe, pôde ver a folhagem de uma caatinga rala e caduca, como ele.
Continuou andando e avistou a indicação Floresta, à direita. De imediato veio à mente uma abundância de águas, como o oásis visto em Triunfo, dias atrás da viagem. Logo, foi tomado por um vento quente que mais parecia o bafo de “sei-lá-quem” soprando na terra pobre e rachada. Viu que a visão era só um sonho.
Resolveu então mudar de rumo, pegou à esquerda em direção a Serra Talhada. No meio do caminho observava, triste, a caatinga que estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de ossadas. No céu, seu único teto desde então, o vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de moribundos vivos, mortos e quase-vivos.
José, repentinamente, sentiu uma punhalada na boca do estômago. A seca e a pobreza enfiaram-lhe uma faca em meio ao ventre e a fome lhe corroia de dentro para fora. Sabia que a região tinha, no máximo e de certeza, alguma plantação de cana-de-açúcar. Juntou umas moedas que ainda restavam no bolso e trocou-as por aguardente e uma lasca de rapadura. Desejou que aquela bebida refrescasse a sua mente, assim como o sopro gelado das noites “Triunfais”. Mas estava fraco, não tinha força nem para desejar, e a cachaça desceu queimando, como a bala da arma de lampião que matara seu avô queimando-o por dentro anos atrás.
Guardou a rapadura e continuou a viagem.
Era fevereiro, época das chuvas de verão. Por um raro momento José sentiu-se no paraíso quando aquelas gotas tímidas e escassas começaram a escorrer-lhe a cabeça queimada. Parou e viveu profundamente aquele momento. Quando abriu os olhos, viu um cão gordo ao seu lado. Não sabia se o bucho era prenhes ou vermes, mas aquela figura curiosa acompanhar-lhe-ia no resto da viagem. O cão olhava para José com os olhos de perdido. Ele levantou-se, seguiu viagem, e o cão o seguiu. Era seu novo amigo e ele sabia disso, então passou a chamar-lhe baleia que lhe lembraria as águas do Pajeú distante.
Finalmente chegou em Serra Talhada. Teve certeza disso ao escutar, lá no fundo, o ritmo do xaxado tomando seus ouvidos. Como aquele lugar tinha crescido! Pensou. Teve certeza que a cada passo que dava a cidade tinha cem pessoas a mais em cada lugar, que há quatro anos atrás, quando lá foi pela primeira vez. Gostaria de estar ali como turista, pois sabia que a cidade tinha muitos atrativos, mas esse não era o caso.
Resolveu sentar à escora de uma árvore que tinha guardado o último galho para fazer sombra na chegada de José. De longe, viu um bicho catando comida entre os detritos; o que achava engolia, com voracidade. De repente aquele Ser levantou-se e andou sobre duas pernas e José viu que o bicho, meu Deus, era um homem!
Chegou perto e ofereceu ao bicho-homem uma lasquinha de rapadura. Ele a engoliu de vez, e José pôde sentir a satisfação da fome saciada naquele homem. Baleia, nesse momento, já estava em meio aos entulhos, mas José não ligou muito. Não tinha nada de melhor para oferecer ao cão.
José então perguntou ao homem:
- Comé seu nome, cumpadi?
O bicho, ou melhor, o homem respondeu:
- O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia, deram então de me chamar Severino de Maria do finado Zacarias.
José então disse:
- Meu avô era Severino, Severino de Itacuruba, porque era o ancião da cidade, na geração dele. Mas o danado do Lampião, homi dessa terra de cá, tratou de levar a alma de meu avô.
Severino respondeu:
- Ah Zé! Nós somos tudo Severino, iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina, de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia. E de fraqueza e de doença a morte ataca em qualquer idade e até gente não nascida. Veja ali aqueles mininu correndo! Tiveram sorte, passaram de um ano, pois antes disso morre muito aqui. A gente tenta fazer mais, mas eles teima em morrer. Se num ano nasce mil, pode crer que trinta não vinga.
Nesse momento uma daquelas crianças que, se não era Severina no nome, era de vida, com aquela cabeça grande que a custo se equilibrava no ventre crescido, acima de duas pernas finas por onde corre um sangue de pouca tinta, chegou junto de Severino chamando-o de pai.
- Deixe pai lhe apresentar Zé, meu novo amigo. Ele vem lá de Itacuruba, deve tá atrás de alguma coisa boa aqui em Serra. Zé, esse é meu filho, o primeiro que vingou. E ainda deixou a mãe três meses no hospital. Mas passou dos cinco anos e agora tá robusto. Já venceu duas diarréias e uma pneumonia. Acho que esse nasceu de bunda pra lua.
- Ô Severino, esse seu menino estuda? Num devia tá na escola uma hora dessas?
- Ah Zé! O estudo aqui é difícil. Pensei em me mudar pra Triunfo, lá as escolas são mió. Mas a minha pobreza é grande. Aqui eu ainda trabalho na roça; lá, nem isso. O mininu ta estudando, mas perde muita aula por causa de doença, e assim que chegar no segundo grau vai parar pra trabaiá na roça comigo.
- Mas só você trabaia na sua casa, Severino?
- A muié faz uns crochê e renda, e mais uns tal de artesanato. Os turista rico da capitá leva tudin. Mas atualmente o movimento ta fraco...
O menino então falou:
- Zé, tu tem comida?
- Deixa disso menino! - retrucou Severino.
- Comida eu num tenho não meu filho, tenho aqui um potin de mel e uma lasquinha de rapadura, tome pra você. Severino, agora eu preciso ir, tô atrás de um hospitá pra trazer minha mãe que tá doente.
José então partiu, na esperança de achar alguém que pudesse cuidar de sua mãe. Ela já estava cansada e velha, e Zé sabia que poucos ali passavam dos sessenta e cinco, mas não podia desistir, era sua mãe.
Andou mais uns quinze minutos, e já encontrava-se no centro da cidade. Provavelmente era dia de festa, talvez uma comemoração política ou partidária, não sabia ao certo. Bacamarteiros saltavam fazendo danças e atirando. O povo ria e aplaudia, e Zé ficou encantado com tudo aquilo. Eita beleza de cidade! Pensou. Ali deveria haver um lugar onde sua mãe seria muito bem tratada.
Quando afastou-se daquela multidão que festejava, viu que baleia não mais o acompanhara (ele deve ter encontrado seu caminho). Encontrou um posto de saúde e resolveu entrar para pedir informações. Nunca tinha visto um posto daqueles. Tinha médico lá, o dia todo, diferentemente de sua cidade. Ficou empolgado, estaria agora na mina de ouro para o tratamento de sua mãe? Pediu licença e foi entrando, passou por um longo corredor com quarto portas, ouviu um barulho estranho, achou ser uma reforma, mas era apenas o barulhinho assustador do compressor do dentista. Chegou ao balcão de recepção onde estava uma moça linda e simpática, que José adoraria que estivesse à sua espera.
- Boa tarde minha sinhora! A sinhora podia me ajudar?
- Diga moço, a que lhe sirvo?
- Eu vim de distante. Há dias que viajo a pé. Me disseram que aqui nessa cidade, eu podia encontrar o que preciso. Minha mãezinha, senhora, está muito velha e doente. Ela já tá no finalzinho, eu sei, mas me acho obrigado a cuidar dela. Onde eu acho um médico pra cuidar dos rim dela? Pelo visto, essa cidade aqui atende muita gente, acho que todo mundo vem pra cá. Mas é difícil sabe. Os bichos atacam nossas barrigas, nossos pulmão, e onde nois mora, num tem muito onde tratar. O melhor é aqui mesmo. Onde eu posso ir? Ah! Me chamo José, é um prazer.
- José, como em todo lugar, é muito difícil a gente conseguir atender toda a população. A gente tenta cuidar das grávidas, mas num damo conta. Das criança, mas num damo conta, e nem dos velhos. O povo continua morrendo e adoecendo de diarréia, pneumonia, verme... Os hospitá ta tudo lotado. Pode acreditar, falta até cama pros doente, eles têm que ficar em cadeira (na verdade tem leito, visse! Mas um monte quebrado). A que ponto chegamos; isso quando não falta médico da especialidade que precisam, e o povo tem que ir pro Recife. Mas eu vou lhe ensinar, a chegar no Estadual. Porque aqui é só PSF, num serve mais pra sua mãe não. Ela precisa duma coisa maior.
- Obrigada moça. Deus lhe pague!
- Não tem de quê! – Entregou o papel a Zé, e ele saiu, em busca do hospital estadual Professor Agamenon Magalhães, o maior, melhor, e único da região.
José, cansado que estava, resolveu parar agora para comer. Precisava encher a barriga com algo de mais sustança. Entrou num boteco, próximo ao posto de saúde, e pediu um prato de comida. Enquanto a comida fervia no fogo, José foi ao orelhão, ligar pra casa, pra saber como as coisas andavam por lá. Imaginou cada grão daquele feijão borbulhando na panela, enquanto caminhava até o orelhão e sentia o chão ardendo-lhe por sob os pés. Usou a única ficha que tinha e desejou, com as últimas forças que lhe restavam, que alguém atendesse a ligação. Passado um longo tempo de vinte segundos esperando, alguém falou do outro lado da linha.
- Alô?!
- Alô Maria! Aqui é Zé! Cheguei em Serra irmã, é tudo tão lindo e tão grande aqui. Achei um hospitá que a moça me indicou, acho que vão poder cuidar de mãe. Como as coisas vão aí?
Um silêncio gélido se fez do outro lado da linha. Há dias José não sentia um frio na espinha, mas preferia não ter de senti-lo daquela forma, o calor imediatamente tornou-se o mais confortável sentimento, mas agora estava tudo frio. Entendeu o que se passava. A sua mãe era só mais uma, mais uma que entrara na estatística. Dos que morrem sem atendimento, ou dos que morrem das doenças mais prevalentes, ou dos que morrem de miséria, ou dos que morrem de velhice... Em qualquer parâmetro ela se encaixava. Pôs o telefone no gancho, como quem descarrega as botas cansadas da lida após um dia inteiro de trabalho duro. Voltou ao boteco arrastando-se como um caminhão puxa um bloco de concreto. Escalou a cadeira e sentou-se em frente ao prato de comida. O feijão tornara-se sem cor, sem gosto. A viagem tornara-se sem sentido e, José, sem esperança. Pôs-se então a pensar...
“E agora, José?
O dia acabou,
A vida findou,
A noite esfriou.
E agora, José?
E agora, você?
Você que é sem mãe,
Que não tem dinheiro,
Que mal tem saúde,
Que vive, sonha?
E agora, José?
Está sem ninguém,
Está sem discurso,
Sozinho sem rumo,
Já não pode sorrir,
Já não pode prosseguir,
Dormir, mal pode...
E agora, José?
Sua doce palavra,
Seu instante de febre...
Seu ódio – e agora?
Com a chave na mão
Quer abrir a porta
Não existe porta;
E as que existem não abrem.
Se você gritasse,
Se você gemesse,
Se você lutasse?
Mas você é apático,
Perdeu a chance,
A mãe já não vive.
Se você dormisse,
Se você cansasse,
Se você morresse...
Não! Morrer não José!
Só pra entrar na estatística?
Marche José!
Fuja a galope,
Mesmo sem saber pra onde,
Um dia irás chegar.”
Como assim ainda não tem nenhum comentário??
ResponderExcluirJá que eu vou ser a primeira, então vamos lá...
Mais uma vez uma criação incrível de uma mente incrivelmete brilhante!!!
Quando eu crescer quero ser igual a tu, hehehe!!
Parabéns mais uma vez... continue com esse seu dom e não deixe que o dia-a-dia seja um empecilho para sua arte... faça dela sua eterna companheira e siga brilhando no seu caminho!!!
Bjão!!
O que dizer diante de uma fala tão coerente? O que dizer diante de um retrato tão fiel da realidade do nosso povo? Diante de um instante sem palavras, o que nos resta é torcer para que um dia tudo isso não passe de contos que relatam episódios distantes e que sirvam de parâmetro de referência para mudanças efetivas. Que Marias, Josés, Severinos e até mesmo "baleias" consigam continuar suas caminhadas diárias na perspectiva de que vale a pena viver, acreditar e continuar tendo esperanças. Grande beijo e que Deus te abençoe.
ResponderExcluirDuvido que você faça idéia de quem passa aqui de vez em quando pra ver o que você escreve... Aqui vai uma dica: Eu passo! :)
ResponderExcluirBeijão!