"Que as palavras soem para você da melhor maneira a se encaixar na sua vida. Sejam doces, amargas, confortadoras, desafiantes, incômodas. Mas que soem... Esse é o meu real desejo."

domingo, 7 de novembro de 2010

Castelos de Isopor

Texto escrito para a coordenação do Curso Médico da UFPE, em meio a um período conturbado, em que alguns têm tentato, de alguma forma, fazer andar pra trás todo o progresso já alcançado por outros.


Quem de nós nunca foi a uma festa infantil? Aqueles que têm um senso mínimo de percepção espacial podem concluir comigo que aquelas belíssimas decorações das mesas são um verdadeiro capricho da engenhosidade humana. Lembro-me de uma festa que fui cujo tema era “Jardim Encantado”. Havia castelos de flores e árvores, animais articulados, jogos de luzes, fadas e duendes, movimentação de trenzinhos, dentre outros. Até formiguinhas com olhinhos móveis. Fiquei maravilhada com a criatividade e com a perfeição de cada detalhe. Permaneci até o final, como se costuma fazer nessas festas de família, e pude ver algo que me trouxe alguma reflexão. A desarrumação da festa.

Em menos de 15 minutos toda aquela mesa estava destruída. Foi permitido às crianças o acesso às guloseimas que estavam em cima, e tudo se foi junto com o alvoroço. Vi os donos da festa impressionados e assustados, eles deviam pensar como fora tão rápido voltar ao estado “nu” do salão que havia sido preparado durante exaustivos 2 dias. Ainda bem já haviam tirado fotos.

Bom, mas quero compartilhar aqui a minha reflexão sobre esses fatos. Na verdade, gostaria de fazer uma associação com aquilo que tenho vivido no curso médico, nesses quase 6 semestres completos de curso.

Entramos na universidade já com uma nova cara. A reforma curricular do curso já havia se instalado de direito e, achávamos nós, que também de fato. No entanto, fomos “surpreendidos” com uma grade curricular um tanto quanto desestimulante no primeiro período. Sonhos frustrados? Não, acho que essa não é a pergunta correta. Viemos sim, cheios de sonhos, mas também com a cabeça aberta a tudo de novo que nos seria apresentado. Expectativas então? Essas sim, essas talvez tenham amornado ou até esfriado no pensamento de alguns. Mas fomos superando e aos poucos nos inteirando daquilo que o curso médico realizou e vem realizando ao longo dos tempos.

A impressão que tenho é de que é como se essa reforma curricular que sabemos ser um grande avanço ainda não estivesse preparada para ser instalada. Ou melhor, não é bem isso. Acredito que a cultura educacional do nosso país ainda não está preparada para sofrer transformações tão drásticas num tradicionalismo que, acham eles, dar certo eternamente. Mas não acho que vale muito a pena entrar nesse mérito, apesar de oportuno, seria um texto politicamente longo, talvez provocador, mas um tanto quanto parcial.

Vale, sim, destacar que desde cedo somos acostumados a buscar conhecimento para manter determinados padrões. O que quero dizer com isso? Se pusermos na curva de Gauss os estudantes brasileiros (digo aqui aqueles que realmente estudam) podemos observar um padrão aproximado da seguinte forma: a grande massa estuda por notas, e aqueles que estão nos percentis mais afastados estudam, de fato, pelo conhecimento e pela contribuição pessoal e social desse conhecimento adquirido. O estudante de medicina devia enquadrar-se nesses percentuais mais afastados, mas não é o que acontece sempre. E de quem é a culpa disso? Quem sou eu para julgar? Mas, é certa uma coisa: a universidade que deveria ser (ou pelo menos tentar) transformadora desses pensamentos nos jovens que adentram, na verdade, tende a atrapalhar um pouco o processo.

A entrada na universidade é um período que nos distanciamos da família e, com isso, de alguns princípios da criação. Não pelo fato de esquecermos aquilo que nossos pais nos ensinaram, mas pelo fato de adentrarmos novos universos, termos agora novas percepções de vida e do mundo, e traçarmos novos horizontes a serem alcançados. E o curso médico deveria, a meu ver, articular-se prevendo esses acontecimentos, a fim de trabalhar nos estudantes os princípios éticos e morais para que a formação seja satisfatória. E aqui aproveito para destacar o importante valor do eixo humanístico e social do curso que, ainda tímido em alguns momentos, tem ganhado um espaço importante e divisor d’águas da formação médica.

Já que tenho falado de sociedade acho prudente que pensemos um pouco sobre como esta vê a profissão médica e o indivíduo médico. Somos nós (profissionais médicos) vistos, muitas vezes, como o curador, o solucionador, aquele que veio para resolver os problemas. Como habitamos um país pobre, onde a grande maioria das pessoas depende do SUS, é mais evidente esse endeusamento do profissional médico como alguém que veio sanar o maior problema do indivíduo em questão. E nós, na nossa humanidade extrema, abraçamos essa idéia e, muitas vezes, até concordamos com ela. Aí está o X da questão.

A estrutura atual do curso médico nos faz pensar em alguns temas importantes, um deles é a hierarquia. Vejo como sendo uma dificuldade constante essa de se submeter a uma liderança. A estrutura departamental do curso se acha (ou é) autônoma suficiente para ditar suas regras e conduzir seus módulos como melhor entender. Nesse meio, a figura da coordenação torna-se um mero moderador das ações, sem nenhum poder decisivo, sem nenhuma influência determinante. E nós alunos, coitados, somos os cobaias das experiências individuais e, muitas vezes dissonantes, de cada professor, coordenador ou departamento.

Por que tudo isso acontece? Da palavra grega “Narke” deriva o termo narcisista, que quer dizer entorpecido. No conceito que conhecemos, trata-se de indivíduos cheios de si mesmo, entorpecidos, que se auto-esmeram. E é isso que vejo acontecer no nosso curso. É como se cada departamento, dentro de cada especialidade médica, se achasse o mais importante. E, com isso, vamos nos formando mini-especialistas de neurologia, de ginecologia, de endocrinologia, de pneumologia e... no fim das contas, nem generalistas sabemos ser direito. A primeira mudança que proponho é uma reflexão quanto a esse narcisismo exacerbado. É sabido que temos professores fantásticos, grandes nomes da medicina e da ciência. Mas todos também sabemos que muitos desses se vangloriam dos títulos, se apóiam em estruturas instáveis de feitos do passado, se espelham numa imagem criada pela e para a sociedade e, assim, vão levando como podem o dever que têm da docência. Isso por que consideram fazer muito pela sociedade (e realmente muitos o fazem), mas esquecem que a negligência com o nosso aprendizado é o pior “crime” social que têm cometido. Esquecem a responsabilidade extrema que têm de ser exemplo para jovens como nós.

Sugiro então um repensar da condição narcisista de auto-admiração para auto-conhecimento. Um indivíduo que toma a consciência do conhecimento de si mesmo, de suas capacidades e limitações (que são muitas) é o primeiro a trazer as melhores contribuições tanto pessoais quanto sociais. E é desse tipo de profissional que o curso médico precisa, tanto na liderança, quanto nos liderados. Profissionais que saibam reconhecer na sua limitação o valor do outro, que saibam entender que a especialidade X não é mais importante que a Y, e que, no fim das contas, o mais importante mesmo é a boa formação do aluno. É preciso que cada chefe de departamento abstenha-se da auto-admiração e comece a compreender a necessidade de ser liderado, não para ser mero “pau mandado” de um coordenador, mas sim para harmonizar as notas e entoar os acordes da organização do curso.

Dessa forma, talvez nós alunos deixemos de ser vistos como bibelôs, como pupilos escolhidos de cada professor, em quem são depositadas apostas sobre o que farão no futuro, apostas sobre o que podem fornecer agora, e nunca apostas para cobrir o que de fato é necessidade. Deixaremos de ser os escolhidinhos da ginecologia, da pediatria, da neurologia e passaremos a ser vistos como indivíduos que precisam dar importância e ver importância em todas as áreas.

Somente dessa forma o curso médico deixará de ser construtor desses castelos de isopor das festas infantis. Castelos que são lindos, compostos por grandes nomes das mais diversas especialidades, mas que não têm a base do conhecimento humano, social e holístico. Castelos que decoram a imagem da Universidade diante do país e, quiçá, do mundo, mas que se abalam com um simples vento (aqui representado por uma prova de residência ou uma avaliação do MEC – que também não são os melhores parâmetros). Castelos que ganham as melhores notas quantitativas e as piores qualitativas. Castelos que compõem uma estrutura arcaica e feudal, onde não há liderança e só vontades próprias. Castelos coloridos, que chamam a atenção dos olhos, mas que não atendem a demanda da população. Castelos que, apesar de ostentar alguma riqueza, não servem, no fim das contas, nem mesmo para massagear o ego daqueles que o constroem.

Deixará de construir castelos que, de fato, servem apenas para o dono da festa tirar uma foto bonita, guardar de recordação o retrato, a imagem do grande feito, mostrar para os outros verem, e, no fim das contas, deixá-los ao léu de quem quer que seja destruir sem qualquer dificuldade.

E passará a construir castelos firmes, que são o reflexo da capacidade humana e do merecimento da sociedade como retorno ao que fazem por nós e para nós.

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